(depois da chamada de emergência, outra operadora do codu do inem telefona para os bombeiros de favaios)
operadora (o): – boa noite. é do codu do inem. é uma saidinha para castedo.
bombeiro de favaios (bf): – diga.
o: – para o bairro de santo antónio, n.º **. diga-me uma coisa: a vmer de vila real é a mais próxima, não é?
bf: – a de vila real já está fechada.
o: – quanto tempo demora a viatura médica?
bf: – ainda demora até ao castedo. vila real...
o: – não. de vila real a castedo?
bf: – ai. de vila real a castedo? sei lá.três quartos de hora.
(a operadora do codu fala com uma médica que se encontra no codu)
o: – doutora, a vmer demora três quartos de hora, mas também não tem coiso aberto...
médica (m): [imperceptível]
o: – mas que quer que ponha? vmer não disponível?
m: [imperceptível]
(volta a falar com os bombeiros de favaios)
o: – não há nenhum centro de saúde aberto?
bf: – não, aqui está fechado.
o: – vamos mandar a vmer de vila real. isto é um masculino, de 44 anos. quem nos ligou diz que caiu das escadas, deitou sangue pela boca, parece estar morto.
bf: – diga. estou?
o: – sim. está-me a ouvir?
bf: – estou.
o: – estou. está-me a ouvir?
bf: – estou...
o: – ó meu deus! eu estou a ouvir. está-me a ouvir?
bf: – diga, diga...
o: – ouviu o que eu disse até aqui ou não ouvi nada?
bf: – não ouvi. desculpe lá, estou a ouvir de telemóvel.
o: – vou mandar vir a vmer de vila real. o senhor caiu pelas escadas. quem ligou diz que já está morto!.
bf: – ah!... pois, e agora o que quer que se faça?
o: – ficha codu 32...
bf: – espere aí, que eu agora não tenho aqui caneta!!!
o: – eu vou ajudá-lo. vou passar a vmer de vila real para ajudar a chegar ao local. não desligue. (...) valha-me deus, estou lixada.
(a operadora do codu liga para a médica de serviço à vmer de vila real)
médica da vmer (mv): – sim?
o: – olá, doutora. é uma saída, para longe.
mv: – para onde?
o: – castedo, alijó. (risos)
mv: – ok. o que é?
o: – um senhor de 44 anos caiu pelas escadas. deitou sangue pela boca. o contactante diz que ele está morto!
mv: – morto?
o: – sim. diz o irmão.
mv: – pois, coitadinho.
c: – mas com uma calma gélida, segundo a minha colega.
mv: – hummm...
o: – eu vou passar-lhe os bombeiros de favaios para dar uma ajudita.
(a operadora do codu retoma a conversa com os bombeiros de favaios)
o: – estou, favaios?
bf: – estou, estou.
o: – ajude aqui a viatura médica, se faz favor..
bf: – sim, sim, ora diga lá então..
o: – estão em linha, pode falar.
(bombeiro de favaios e a médica da vmer de vila real falam um com o outro)
mv: – boa noite.
bf: – boa noite.
mv: – boa noite. podiam dar-nos algumas indicações? onde é o...
bf: – como, como?
mv: – se nos podia dar algumas indicações. onde é...
bf: – ora bem. eu não sei como é que vou explicar. chega ali a alijó, vai adiante, ao pé das bombas de gasolina. há uma rotunda à esquerda. corta à esquerda, para ir ao intermarché. e segue sempre em frente para o castedo. sempre estrada fora.
mv: – para onde?
bf: – para o castedo.
mv: – ok. pronto, obrigado.
bf: – e agora, o que faço?
mv: – diga?!?
bf: – o que faço? é preciso ir lá eu?
mv: – (risos). ó senhor, nós vamos a caminho.
(a operadora do codu reentra na chamada telefónica)
o: – ó, favaios!
bf: – diga, diga.
o: – obviamente é para lá ir a ambulância para iniciar suporte básico de vida. se estiver em paragem. digo eu.
bf: – olhe, mas arranco para lá eu?
o: – ... (risos).
bf: – estou?
o: – peço desculpa. eu estou a falar com uma corporação de bombeiros, não estou?
bf: – está sim. mas estou a atender o telemóvel.
o: – então eu estou a dar-lhe uma saída, e pergunta-me a mim o que vai fazer? nunca tal me aconteceu.
bf: – desculpe lá, desculpe lá.
o: – claro que tem de ir para o local com a ambulância e com o colega.
bf: – então qual é o número?
o: – 32703.
bf: – posso desligar, codu?
o: – pode, pode.
bf: – arranco então. vou já arrancar para lá.
o: – sim, arranque para lá. avalia a vítima e, quando tiver dados, dá a informação para cá para o codu.
bf: – eu estou sozinho.
o: – está sozinho?
bf: – estou.
o: – então como vai sair uma ambulância sozinha?!.
bf: – não tenho mais ninguém agora aqui.
o: – como não tem?
bf: – então como vou fazer!?!
o: – espere aí! (dirigindo-se para a médica da vmer) ó doutora, favaios está sozinho, não tem mais ninguém... (volta a falar com o bombeiro) não arranja outro tripulante?
bf: – quem é que vou arranjar agora?!
o: – qual é a corporação mais próxima além de vocês?
bf: – só alijó.
o: – quanto tempo para chegar ao local?
bf: – é só ir buscar a ambulância e arrancar!
o: – é só ir buscar a ambulância e arrancar! (risos em fundo)
bf: – cinco minutos.
o: – mas quanto tempo demora a chegar ao local?
bf: – daqui ao local são sete a oito minutos.
o: – dez minutos. qual é a corporação mais próxima? é alijó?
bf: – é alijó.
o: – quanto tempo alijó demora a chegar ao local?
bf: – mais ou menos a mesma coisa. é pegado.
o: – então vou mandar alijó. vou pedir ajuda, para você ajudá-lo a chegar ao local. (desabafo para alguém que está ao lado) tu estás a ver? ele está sozinho. “o que é que eu faço?”, pergunta-me ele.
(a operadora do codu telefona para os bombeiros de alijó)
bombeiro de alijó (ba): – estou sim...
o: – uma saidinha para castedo.
ba: – castedo é favaios!
o: – pois é. mas favaios está só com um senhor e a ambulância. e a vítima pode estar em paragem respiratória. vai a viatura médica de vila real. não posso enviar uma ambulância só com uma pessoa para fazer uma emergência médica.
ba: – aqui também não tenho ninguém.
o: – não tem aí ninguém.
ba: – não. só se chamar...
o: – então...
ba: – aqui só fico eu de noite.
o: – só fica o senhor sozinho de noite na corporação? então se há um incêndio?
ba: – tenho de tocar a sirene.
o: – tem de tocar a sirene. ó valha-me deus!
ba: – minha amiga, não temos meios.
o: – (dirigindo-se à médica da vmer) ó doutora, alijó idem idem...
ba: – mas eu vou chamar um colega meu.
o: – ó doutora. eu posso mandar ir o de favaios e o de alijó. (dirige-se ao bombeiro) o senhor pode ir?
ba: – vou chamar o meu colega.
o: – vai chamar o colega. pronto, então siga. vá. bairro de santo antónio. n.º **
ba: – qual é o número da ficha?
o: – 32706, sabe onde fica?
ba: – sei, sei. vou já ligar.
o: – pronto, obrigada.
(chamada termina após nove minutos e meio, minutos depois das 04h00 de anteontem)
chamada para o 112
(uma mulher é atendida por uma operadora do codu minutos antes das 04h00 de anteontem)
operadora (o): – emergência médica, bom dia.
mulher (m): – [imperceptível]
o: – mais alto, estou a ouvir muito mal.
m: – [imperceptível]
o: – castedo, alijó, bairro de santo antónio nº **. diga-me o número de telefone caso a chamada vá abaixo.
m: – *********
o: – *********. minha senhora, ouça o que lhe vou dizer. o que se passa aí?
(um irmão de antónio moreira toma o lugar da mulher do outro lado da linha)
irmão (i):– estou? estou?
o: – diga então o telefone daí.
i: - *********.
o: – pronto, muito bem. diga-me o que se passa aí.
i: – podia ligar-me aos bombeiros?
o: – diga-me o que se passa aí. para que quer a ambulância?
i: – [imperceptível]
o: – quer uma ambulância em sua casa?
i: – a vir cá alguém é a guarda [a gnr], não é?
o: – mas quer a guarda ou a ambulância?
i: – vale mais a guarda.
o: – olhe, se é só a autoridade que quer, vai desligar e voltar a ligar 112 e pede autoridade. se há pessoas feridas, é mais ambulância.
i: – não, não... ele morreu.
o: – morreu?!
i: – ele deve ter morrido.
o: – e é homem ou mulher?
i: – é um homem.
o: – com que idade?
i: – quarenta e nove, mais ou menos.
o: – quarenta e quantos?
i: – quarenta e quatro.
o: – quarenta e quatro anos. ele já estava doente ou foi agredido?
i: – ele estava doente.
o: – doente com quê?
i: – caiu!
o: – você é familiar dele?
i: – sou irmão.
o: – o seu irmão já estava acamado?
i: – não. estava em pé e tudo. foi em casa. ia a descer as escadas e caiu.
o: – ao descer as escadas caiu. foi hoje a queda?
i: – foi, foi agora de noite.
o: – o senhor disse que ele morreu.
i: – é. está morto. deitou muito sangue pela boca.
o: – mas diga-me uma coisa: isso mesmo agora?
i: – foi. a minha mãe estava a dormir e deu conta.
o: – ele não respira?
i: – não.
o: – confirme-me a morada.
i: – [imperceptível], alijó.
o: – como?
i: – castedo, alijó.
o: – o senhor está a dizer que o seu irmão faleceu e está tão calmo. o senhor não está a brincar com o 122, pois não?
i: – não. não estamos a brincar. ouve lá.
o: – neste momento o seu irmão não se mexe e não respira?
i: – não, não, não.
o: – olhe, vai desligar que eu daqui a um bocadinho volto a ligar. pretendem ambulância e autoridade. é isso?
i: – sim, sim.
o: – para que querem a autoridade?
i: – quer dizer que não se vai tocar nele nem nada. não é?
o: – o quê?
i: – não se pode tocar nele.
o: – fique a aguardar a chegada de ajuda. boa noite.
(a chamada termina depois de quatro minutos de conversa)
um certo país: (a opinião de manuel catarino, chefe de redacção)
aconversa telefónica entre a operadora do centro de orientação de doentes urgentes e um bombeiro de serviço no quartel de favaios parece tirada de um filme cómico – mas desgraçadamente verdadeira e trágica. ao pedido de socorro, ele responde com um desabafo revelador do amadorismo e da impreparação de quem tem a missão de salvar vidas. o triste bombeiro, perante a necessidade de mandar avançar uma ambulância pergunta-se desolado: “e agora, o que quer que faça?” estava sozinho de serviço no quartel. o mesmo em alijó – um único bombeiro de plantão só para atender o telefone. tenho a certeza de que o exemplo de favaios e de alijó não se estende à generalidade dos corpos de bombeiros portugueses: será a excepção que mancha a regra. mas esta história é o retrato fiel de um certo país – um país miserável, abandonado, relapso e irresponsável.
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